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Direito e Economia: sob as lentes de Coase

Por Paulo Furquim de Azevedo Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Análises com o rigor e o método acadêmicos, mas com uma linguagem ível para todos, sem os jargões e as firulas do texto acadêmico. Com a co-autoria de Luciana Yeung

O dilema das patentes

Proteger a propriedade intelectual ou deixar livre o uso das inovações? Eis um debate sobre melhor aproveitamento das ideias, o motor da economia moderna

Por Larissa Quintino Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 30 Maio 2025, 08h52

Poucas certezas são tão bem estabelecidas pela Análise Econômica do Direito e pela Nova Economia Institucional quanto a de que a garantia dos direitos de propriedade privada é uma das regras mais fundamentais para a prosperidade econômica de uma nação. Isso porque ela gera incentivos claros para que indivíduos e empresas invistam, protejam e desenvolvam ativos. Essa lógica é ainda mais evidente quando se trata da propriedade intelectual, cujos efeitos sobre o desenvolvimento econômico são particularmente relevantes no mundo contemporâneo.

Vivemos em uma economia cada vez mais movida por ideias — sejam invenções tecnológicas, descobertas médicas, avanços científicos, dados meteorológicos, desenvolvimento de novos produtos, métodos produtivos, criações artísticas ou inovações empresariais. No entanto, embora as ideias sejam o motor da economia moderna, seu desenvolvimento é caro, incerto e sujeito a uma série de falhas de mercado. Elas geram externalidades positivas, ou seja, beneficiam toda a sociedade, mesmo aqueles que não participaram dos custos de sua criação. Além disso, possuem as características típicas de bens públicos, pois são não-rivais (uma pessoa usar não impede que outras também usem) e, muitas vezes, não-excludentes (é difícil impedir que terceiros se beneficiem delas, especialmente no contexto digital).

Essa natureza econômica faz com que a geração de ideias, por si só, exija uma proteção institucional robusta. O paradoxo é claro: enquanto os custos de desenvolvimento de inovações são extremamente altos — a criação de um novo medicamento, por exemplo, pode ultraar bilhões de dólares —, sua replicação, uma vez criada, é praticamente gratuita. É justamente nesse contexto que a propriedade intelectual adquire papel central como instrumento de incentivo econômico.

O sistema de patentes é o principal mecanismo institucional utilizado para lidar com esse desafio, especialmente na indústria. Por meio das patentes, governos oferecem aos inventores — sejam indivíduos, universidades ou empresas — o direito exclusivo de explorar comercialmente sua invenção por um período determinado. Na prática, trata-se de um monopólio temporário, concedido em nome do interesse público, com a expectativa de que, ao fim da vigência, o conhecimento retorne ao domínio público.

Mas aqui surgem os dilemas. Todo estudante de teoria microeconômica sabe que monopólios geram distorções de mercado: preços mais altos, menor quantidade produzida e consequente perda de bem-estar social, representada pelo chamado “peso morto”. As patentes, portanto, são uma solução de second best, um arranjo institucional que, embora gere ineficiências, é justificado pelos incentivos que cria para a inovação.

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Diante disso, a pergunta central é: será que esse trade-off vale a pena? A resposta está longe de ser consensual. O tema divide economistas, juristas e formuladores de políticas públicas no mundo inteiro. De um lado, estão aqueles que defendem o sistema de patentes como peça essencial do desenvolvimento econômico moderno. É o caso dos renomados economistas Daron Acemoglu e John Robinson, que, em Why Nations Fail, mostram como o sistema de patentes foi decisivo para o desenvolvimento dos Estados Unidos. Entre 1820 e 1845, apenas 19% dos detentores de patentes no país pertenciam às elites econômicas, enquanto 40% tinham, no máximo, educação primária. O dado revela um sistema institucional que democratizava o o à inovação, permitindo que indivíduos de origens modestas transformassem conhecimento e esforço em ativos econômicos. Na visão dos autores, assim como os Estados Unidos eram uma exceção em termos de democracia política no século XIX, também foram ao criar instituições que ampliavam o o à atividade inventiva — um dos pilares da ascensão americana como potência econômica global.

Por outro lado, há economistas igualmente renomados que questionam profundamente a eficácia e a justiça do atual modelo de patentes. Joseph Stiglitz, também Prêmio Nobel, é um dos críticos mais contundentes. Segundo ele, o sistema atual muitas vezes não serve mais para incentivar a inovação, mas sim para proteger posições de mercado, gerar barreiras artificiais à concorrência e alimentar as chamadas “guerras de patentes”, particularmente no setor de tecnologia. Em muitos casos, as disputas judiciais bilionárias não têm como objetivo proteger invenções genuínas, mas sim sufocar concorrentes, gerar custos estratégicos e limitar a inovação — reforçando, assim, desigualdades econômicas e barreiras ao desenvolvimento. Como Stiglitz alerta, a propriedade intelectual, mal desenhada ou mal utilizada, pode se transformar mais em um mecanismo de concentração de riqueza do que de promoção do bem-estar coletivo.

A pandemia da covid-19 reacendeu de forma dramática esse debate. A urgência global por vacinas, medicamentos e tecnologias evidenciou as tensões entre, de um lado, a proteção dos incentivos econômicos e, de outro, o o universal ao conhecimento em situações de emergência sanitária. Um artigo recente na revista Nature Biotechnology, do professor Richard Gold, da Universidade McGill, no Canadá, discute como o excesso de proteção de patentes pode, em certas circunstâncias, desacelerar respostas globais a crises sanitárias, ao limitar o compartilhamento de tecnologias críticas e o licenciamento de inovações essenciais. Não é um debate inédito. O Brasil já viveu situação semelhante no enfrentamento da epidemia de HIV/Aids, quando adotou o licenciamento compulsório dos medicamentos antirretrovirais. A decisão, à época, foi criticada por alguns — especialmente grandes farmacêuticas —, mas também aplaudida por diversos países e organizações internacionais, tornando-se um marco histórico na discussão sobre saúde pública e propriedade intelectual. A dissertação de Tatiana S. Nogueira, defendida na Fiocruz, oferece uma análise particularmente lúcida sobre esse episódio, mostrando como, sob certas condições, o licenciamento compulsório pode ser não apenas socialmente desejável, mas economicamente eficiente.

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Diante de tudo isso, uma conclusão se impõe: não existem verdades absolutas no desenho de instituições econômicas, especialmente quando se trata de políticas públicas sensíveis como a regulação da propriedade intelectual. O conhecimento científico é, por definição, um processo dinâmico, sempre sujeito ao debate, à revisão e ao aprimoramento. O grande desafio — que segue permanentemente em aberto — é encontrar o equilíbrio ótimo entre, de um lado, incentivar a criação de ideias e inovações e, de outro, garantir que essas criações gerem o máximo de bem-estar social possível. É um debate que exige rigor, honestidade intelectual e, acima de tudo, abertura para repensar velhas certezas à luz de novos contextos e desafios.

Referências

ACEMOGLU, Daron; ROBINSON, James A. Why nations fail: The origins of power, prosperity and poverty. London: Profile, 2012.

GOLD, E. Richard. What the COVID-19 pandemic revealed about intellectual property. Nature biotechnology, v. 40, n. 10, p. 1428-1430, 2022. (Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41587-022-01485-x)

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NOGUEIRA, Tatiana S. Licenciamento compulsório e o ao tratamento do HIV/AIDS no Brasil. 2013. 115 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Rio de Janeiro, 2013.

STIGLITZ, Joseph. “How Intellectual Property Reinforces Inequality” The New York Times – Opinionator, July 14, 2013. (Disponível em: https://archive.nytimes.com/opinionator.blogs.nytimes.com/2013/07/14/how-intellectual-property-reinforces-inequality/ )

Luciana Yeung é Professora Associada e Coordenadora do Núcleo de Análise Econômica do Direito do Insper. Membro-fundadora e ex-presidente da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE), Diretora da Associação Latino-americana de Direito e Economia (ABDE), Diretora da Associação Latino-americana de Direito e Economia (ALACDE). Pesquisadora-visitante no Law and Economics Foundation na Universidade de St Gällen (Suíça) e no Institute of Law and Economics, da Universidade de Hamburgo (Alemanha). Autora de “O Judiciário Brasileiro – uma análise empírica e econômica”, “Curso de Análise Econômica do Direito” (juntamente com Bradson Camelo) e “Análise Econômica do Direito: Temas Contemporâneos” (coord.), além de dezenas de outras publicações, todos na área do Direito & Economia.

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