Como a paternidade molda o cérebro do homem e transforma o cuidado 4v6r37
Diante da discussão do aumento da licença-paternidade no Brasil, colunista entrevista uma das maiores estudiosas de parentalidade do planeta 202rw

Quando pensamos em transformação cerebral durante a chegada de um bebê, quase sempre olhamos para as mães. Mas e os pais? A ciência começa a mostrar que o cérebro masculino também muda com o cuidado — e não é pouco.
As estruturas se remodelam, os hormônios oscilam e até o propósito de vida ganha nova forma. Só que há um detalhe: essas mudanças não vêm “de fábrica”. Elas dependem de algo simples, mas ainda pouco praticado — o envolvimento real com o bebê.
Eis um assunto e tanto para compreendermos melhor em tempos de discussão do aumento da licença-paternidade junto ao governo brasileiro.
Por isso decidi procurar a psicóloga Darby Saxbe, professora da Universidade do Sul da Califórnia, nos Estados Unidos, e uma referência internacional no estudo da parentalidade, para explorar o que acontece dentro da cabeça e do corpo dos homens quando eles se tornam pais.
E por que apoiar a paternidade ativa não é só uma questão de justiça, mas uma política urgente de saúde pública.
Sua pesquisa foca em como os vínculos familiares influenciam a saúde mental e física, com ênfase na transição para a paternidade. Vamos começar com uma pergunta essencial: o que acontece com o cérebro de um homem quando ele se torna pai?Darby Saxbe: Temos evidências crescentes de que o cérebro dos homens realmente muda com a paternidade — e essas mudanças favorecem o cuidado. Do ponto de vista estrutural, observamos reduções em áreas cerebrais ligadas à cognição social, como aquelas envolvidas em entender os sentimentos e pensamentos dos outros. Pode parecer ruim “perder” volume cerebral, mas, na verdade, isso representa um processo de refinamento, tornando o cérebro mais eficiente e especializado para cuidar. Essas mudanças não ocorrem automaticamente, mas dependem do envolvimento com o bebê. Em nossos estudos, vimos que pais que planejavam tirar licença ou que avam mais tempo com o filho apresentavam alterações cerebrais mais pronunciadas.
Essas mudanças são parecidas com as observadas em mães?
Em parte, sim. Nas mães, as mudanças são tão marcantes que conseguimos identificar cérebros de mães e não mães apenas com exames de imagem. Nos pais, o padrão é mais variável, possivelmente porque o envolvimento ainda é muito desigual. Mas quando os homens se engajam ativamente nos cuidados, vemos alterações semelhantes em áreas associadas ao vínculo e à sintonia emocional.
Ou seja, não é só biologia — é prática.
Exato. O cérebro masculino tem a capacidade de se adaptar à parentalidade, mas essa capacidade precisa ser ativada. O que faz diferença é a proximidade real com o bebê: tempo junto, cuidado direto, vínculo. Até mesmo as intenções contam: pais que planejavam se envolver mais já apresentavam mudanças. É a vivência, não só a genética, que transforma o cérebro.
E os hormônios? Os homens também mudam ao virar pais sob esse ângulo fisiológico?
Mudam, sim. A testosterona costuma diminuir, o que pode favorecer comportamentos mais sensíveis e maior compromisso com a família — como se o corpo trocasse o modo conquista (mating) pelo modo cuidado (nurturing). Já a ocitocina — o famoso hormônio do vínculo — tende a aumentar com o contato com o bebê. A prolactina também se altera. Além disso, os hormônios do casal começam a se sincronizar. Essa coordenação pode ser essencial para o trabalho conjunto de cuidar.
Quão comum é a participação de machos na criação da prole, em termos biológicos?
Não muito. Na maioria das espécies, os machos não contribuem com os cuidados. Há exceções — entre alguns peixes e aves, por exemplo — mas, entre os mamíferos, apenas cerca de 5% das espécies apresentam envolvimento paterno. Nesse sentido, a presença ativa de pais humanos é quase uma anomalia — e talvez um dos segredos do nosso sucesso como espécie. Isso se conecta ao fato de sermos uma espécie alloparenting — ou seja, não é só a mãe que cuida. Criar filhos é (ou deveria ser) um esforço coletivo. Isso faz sentido se pensarmos que nossos bebês nascem extremamente dependentes, sem conseguir andar, falar ou se alimentar sozinhos. Mas mesmo dentro da nossa espécie, há uma enorme variação no nível de envolvimento dos pais.
Isso derruba aquela ideia de que cuidar é instintivo para mulheres e “contra a natureza” para os homens?
Totalmente. A narrativa de que o cuidado é biologicamente feminino está ultraada. Cuidar é uma capacidade humana. O cérebro masculino responde, sim — desde que receba a oportunidade. Se o pai não tem chance de se envolver, essa capacidade fica dormente. A ciência mostra que o cuidado é algo que se desenvolve, não algo reservado a um único gênero.
No Brasil, discute-se ampliar a licença-paternidade de cinco para 30 dias. Um projeto de lei está previsto para votação no final de junho. E há um movimento cada vez mais ativo sobre o tema — a Coalizão Licença-Paternidade, formada por organizações da sociedade civil que pressionam por mudanças. Alguns dizem que, mesmo com a ampliação, os homens não usariam esse tempo. Será?
Políticas públicas fazem toda a diferença. Na Finlândia e na Suécia, por exemplo, ambos os países adotaram modelos de licença parental que incluem períodos use it or lose it — ou seja, se o pai não utilizar uma parte específica da licença, ele perde esse direito. Na Finlândia, desde a reforma de 2022, cada pai e mãe tem direito a 160 dias de licença parental remunerada, sendo que até 63 dias podem ser transferidos para o outro progenitor. O restante é intransferível e, se não utilizado, é perdido. Isso incentivou mais pais a tirarem licença e se envolverem nos cuidados com os filhos.
Como isso impacta a saúde das mães?
Quando os pais tiram licença e participam desde o início, as mães têm menores índices de depressão pós-parto, dormem melhor e se recuperam mais rápido. O relacionamento do casal também tende a melhorar. Apoiar a paternidade é uma estratégia de saúde pública feminina. Não é um jogo de soma zero — todos ganham.
Pais também sofrem com depressão pós-parto?
Sim, embora em menor proporção do que as mães. Mas ela é real — e parece ter alguma ligação com a redução da testosterona, o que mostra como o papel desse hormônio na família é complexo. Privação de sono, estresse no relacionamento e falta de apoio aumentam esse risco. Pais deprimidos tendem a se afastar emocionalmente, o que impacta a criança e o vínculo familiar. Ter uma licença remunerada bem estruturada pode ajudar a mitigar esse risco e proporcionar uma transição mais saudável para todos.
Então, licença não é só sobre “vínculo afetivo”, mas uma política de saúde pública?
Sem dúvida. Ainda tratamos a parentalidade como uma escolha privada, mas ela é um investimento coletivo. Apoiar mães e pais, especialmente nos primeiros anos, contribui para o bem-estar das crianças e da sociedade. Precisamos valorizar o cuidado como trabalho essencial.
Você costuma dizer algo que eu adoro: “Grandes pais são feitos, não nascem prontos”. Pode explicar?
Claro. A capacidade de cuidar é construída. Tempo, prática, motivação — tudo isso molda o cérebro, os hormônios, os hábitos. Precisamos abandonar a ideia de que as mulheres são naturalmente cuidadoras e os homens, não. Dado o espaço, os pais se envolvem — e se transformam.
Ser pai faz bem para os homens?
Sim. A paternidade envolvida pode trazer benefícios duradouros para a saúde mental e até para o envelhecimento cerebral. Em um momento em que muitos homens enfrentam isolamento social e perda de propósito, o papel de pai pode ser uma fonte poderosa de conexão e sentido. Claro, a transição para a paternidade (e maternidade) pode ser um momento de risco — com maior vulnerabilidade para problemas de humor, obesidade, estresse —, mas também é uma fase cheia de mudanças e oportunidades.
Muito obrigada, Darby. Sua pesquisa é ciência com impacto — e urgência.
Obrigada, Ilana. Espero que ela ajude a mudar a conversa — em todos os lugares.
* Ilana Pinsky é psicóloga clínica e doutora pela Unifesp. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto), entre outros livros. Foi consultora da OMS e da OPAS e professora da Universidade Colúmbia. Siga a colunista no Instagram: @ilanapinsky_