Trump atropela a Primeira Emenda dos EUA, diz Lee Bollinger, especialista no tema 1t3c4z
Ex-reitor da prestigiada Universidade Columbia, ele teme que o cerco às universidades comprometa o saber global 124k2w

Após 21 intensos anos como reitor da prestigiada Universidade Columbia, em Nova York, Lee Bollinger decidiu desacelerar e seguir com a vida como professor na escola de direito, no mesmo campus. Era 2023, e mal sabia ele que as circunstâncias o empurrariam de volta aos holofotes. Aos 79 anos, o eminente estudioso da Primeira Emenda da Constituição americana — dispositivo legal que vai mais longe na proteção da liberdade de expressão — resolveu se pronunciar sobre os recentes atropelos ao texto pelo governo Donald Trump. As tentativas da Casa Branca de cercear o livre pensar em instituições que irradiam o saber são claros exemplos, para ele, de desrespeito a um dos pilares sobre o qual se ergue a democracia do país. Por isso comemorou recentemente o fato de a Universidade Harvard reagir contra a interferência do governo. Figura fundamental na história da implantação de ações afirmativas no ensino, cujo princípio aportou mais tarde no Brasil (onde ele curiosamente fez intercâmbio na adolescência), Bollinger falou a VEJA de seu escritório em Nova York. Confira os principais trechos da entrevista.
O senhor já havia presenciado um nível de interferência nas universidades americanas como o de agora? Nunca vi nenhum governo tentar pôr a mão em decisões que pertencem à universidade como ocorre hoje. E olha que já vivi fases espinhosas, tomadas por controvérsia, como quando o que estava na mesa eram as ações afirmativas no campus, nos anos 1970. O que assistimos agora na academia americana é inédito e faz acender um alerta: seus efeitos nocivos podem se desdobrar pela produção de conhecimento e inovação planeta afora. Seria devastador.
A Casa Branca anunciou cortes bilionários para Harvard, uma das mais prestigiadas instituições do ensino superior, por não ter suspendido ações pró-diversidade e se recusar a fornecer dados de alunos ao governo. Há um cerco à tão cultuada liberdade de expressão no campus? Sem dúvida, e isso ocorre em bases novas, atropelando a Primeira Emenda em sua essência. Quando as autoridades dizem “você não pode enveredar por tal caminho porque eu não gosto”, violam um princípio sobre o qual se ergueu a própria identidade dos Estados Unidos — o da liberdade radical de pensamento de qualquer natureza. Mais inaceitável ainda é fazê-lo sob a ameaça de subtração de verbas.
Como qualifica esse tipo de pressão aos olhos da lei? Ao querer impor à base de ameaças seu filtro ideológico, o governo fere uma ideia sedimentada no cenário pós-Segunda Guerra, de que é a academia que mantém o controle sobre si, por meio de seus mecanismos, e gere o financiamento público como julgar melhor. A mensagem atual colide com esta ao trazer uma condicionalidade: “Só te damos a verba se parar de afirmar certas coisas”. Para mim, é um claro desrespeito à Primeira Emenda e um desafio para o Judiciário.
Harvard foi a primeira a não se dobrar ao rol de demandas do governo. Qual efeito isso pode ter? A universidade escolheu o caminho certo, indo à Justiça para brigar pelo que define a excelência — o livre pensar. Logo vamos assistir aos próximos os. Confio que a Corte vai desenvolver uma doutrina sobre o tema, rechaçando o uso do poder econômico e político como arma para impor uma ideologia.
Não aconteceu algo parecido nos sombrios tempos do macarthismo, na década de 1950? Foi um dos pontos mais baixos da história americana, quando pessoas inocentes eram tachadas de comunistas, sendo ou não, e punidas por expressarem suas opiniões. A questão hoje é que não se trata da ação de um senador como Joseph McCarthy, mas de um Executivo em pleno poder, punindo opositores e instituições por seus pontos de vista.
“Harvard escolheu o caminho certo, indo à Justiça para brigar pelo que define a excelência — o livre pensar. Confio que a Corte vai rechaçar o uso do poder como arma para impor uma ideologia”
Quais outras engrenagens da democracia têm sofrido, em sua opinião, interferência indevida? A imprensa é um ponto de atenção. Órgão respeitado, a Associated Press chegou a ser banida da sala de imprensa da Casa Branca por sua linha editorial. E os escritórios de advocacia, que foram ameaçados de não poder entrar em prédios públicos por representarem clientes dos quais o governo Trump discorda? Tudo isso afronta a Primeira Emenda.
Há algumas semanas, um estudante muçulmano de Columbia foi preso sob o risco de deportação por participar de atos pró-Palestina, que o governo alega terem resvalado para o antissemitismo. Seria aceitável expulsá-lo do país? Ninguém pode ser detido nem deportado por exprimir sua opinião. Nos últimos 125 anos, a Suprema Corte arbitrou à luz da Primeira Emenda e construiu um sólido corpo de jurisprudência sobre o que significa liberdade de expressão. Os juízes, liberais e conservadores, concordam sobre o princípio de que não se pode punir um ponto de vista, nem ideias ofensivas e repulsivas.
Mas não há limites para o discurso da intolerância? Ele deve ser veementemente condenado, como tradicionalmente o é nas universidades, mas não há mecanismos na Primeira Emenda para puni-lo. O que é ível de pena é um ataque direto, como brandir insultos antissemitas na cara de um judeu, e lesar o patrimônio, como aconteceu com a ocupação de prédios no campus de Columbia.
Houve antissemitismo nas manifestações? É preciso ter muito cuidado ao fazer alegações tão sérias como esta. Discordar de decisões tomadas pelo Estado de Israel — algo perfeitamente legítimo — não é sinônimo de antissemitismo. Às vezes, é difícil mesmo discernir. Isso me lembra muito um trecho famoso da Primeira Emenda que põe o discurso obsceno fora de seu guarda-chuva. Os tribunais tiveram que definir então o que seria obscenidade e nunca conseguiram fazê-lo de forma satisfatória. Foi aí que o juiz Potter Stewart falou: “Não tenho uma definição, mas sei reconhecer quando está na minha frente”.
Não punir o discurso de ódio nestes tempos de polarização não é uma brecha perigosa da Primeira Emenda? Ela é intencional. Qualquer pessoa razoável acha destrutivo o discurso contaminado por ódio, mas há uma razão para juízes de todos os matizes protegê-lo. O outro caminho, sabemos, abriria espaço para que o governo decidisse o que é ou não intolerância. E, se ele tiver tal poder, acabará usando-o para castigar o discurso que bem escolher. É uma visão distinta da que prevalece na Europa e no Brasil.
O senhor acha que essa lógica deve se estender às redes sociais, que viraram metralhadoras de disseminação de preconceito e fake news? Essa é uma questão que ainda exige profunda reflexão. Escrevi um livro sobre o tema. Nos Estados Unidos, os conservadores, com medo de ser silenciados, defendem que os donos das grandes plataformas digitais deem espaço a qualquer opinião. Me preocupa essa abordagem tão livre aplicada ao ambiente das redes, por seu potencial de reverberar ideias danosas à democracia. Acho que vale olhar para o modelo americano de transmissão de TVs, em que o governo estabelece regras não para censurar, mas para evitar que o monopólio privado de meios de comunicação defina a agenda pública.
As redes podem então acabar levando a uma mudança na Primeira Emenda? Ela talvez precise ser calibrada diante da onipresença das redes. Mas não tenho uma resposta definitiva sobre a forma como o texto deveria ar a ser interpretado.
O senhor já foi alvo da fúria de Trump, que o chamou de “idiota total” nos tempos em que era reitor de Columbia e ele, empresário. Acha que o rancor do ado tem a ver com suas estocadas contra a universidade? Há especulações de que essa seria uma causa. Na época, ele queria que a universidade comprasse uma propriedade sua, e eu tinha outro plano. Me tornei uma de suas primeiras vítimas, mas não me incomodou. Vez por outra, ele voltava a me atacar.
Diante da ameaça de redução de verbas federais, Columbia cedeu à Casa Branca, trocando até quadros de chefia de certos departamentos. Devia ter resistido? Como fui reitor de lá até dois anos atrás, por princípio prefiro não tecer comentários sobre isso. Mas deixei publicamente explícita minha preocupação com a liberdade acadêmica que nos conduziu até aqui.
Imagens da invasão de alunos a edifícios no campus em 2023, seguida da entrada da polícia, correram o mundo. A universidade não soube lidar com a crise? Já ei muitas vezes pela situação de enfrentar protestos que saem do controle. Mas precisamos entender que ali estão jovens fazendo o que um jovem faz — protestar, ainda que abracem posições que rejeitarão mais tarde. Ao mesmo tempo, em delicado equilíbrio, se faz obrigatório cuidar dos que podem sair feridos. Chamar a polícia é algo traumático para o campus.
Os alunos se excederam? Não tenho simpatia por estudantes que quebram as regras ao saltar do discurso livre à ocupação de prédios. Ocorreu em mais universidades americanas e até em outros países.
“Já ei pela situação de enfrentar protestos que saem do controle. Mas precisamos entender que ali estão jovens fazendo o que um jovem faz — protestar”
Uma das justificativas de Trump para impor sua cartilha nas universidades é o combate ao pensamento woke, que, ao defender a inclusão de minorias, estaria excluindo outros e comprometendo a excelência. Concorda? Isso é uma hipérbole que simplifica uma questão séria. Estão fazendo uma caricatura do woke, como se fosse incapaz de enxergar os problemas reais. O esforço americano ao longo de décadas para alcançar a justiça racial por meio de ações afirmativas foi um trabalho nobre, bem-sucedido e muito real, mas ainda não concluído. Agora, está sendo interrompido e revertido.
A Suprema Corte do Reino Unido decidiu que mulheres trans não se enquadram na definição legal de mulher — o já dado pelo próprio Trump. É outra afronta à liberdade individual? Do ponto de vista constitucional, o assunto é mais complicado, mas me espanta o modo como tem sido tratado. É como se não se pudesse mais falar em fluidez de gênero e na natureza humana, todos temas que foram tão profundamente discutidos pela sociedade e nas universidades. Tudo se reduz agora a: “Olha o que acontece quando alguém muda a identidade de gênero e compete injustamente em esportes femininos”.
Pesquisas mostram que cada vez mais acadêmicos cogitam deixar os Estados Unidos. Tem observado isso? Ainda não vejo como um movimento dominante, mas pode virar. Pela primeira vez na memória recente, as universidades americanas, que vêm contribuindo de forma tão decisiva para o conhecimento humano, correm o risco de perder seu status. Há uma luta ainda longa que devemos travar em prol da manutenção das verbas que fazem girar a roda da excelência.
Trump vem afrontando o Judiciário, como tantos autocratas. Ele já se enquadra na classificação? Desde os anos 1800, um dos princípios fundamentais da vida americana é que os tribunais têm a palavra final na interpretação das leis e os demais poderes acompanham tal decisão. Isso vai ao cerne do que significa ser um país sob o estado de direito — algo que autocratas como Putin, na Rússia, e Orbán, na Hungria, ignoram. Trump já fez afirmações que causaram alarme e outras mais tranquilizadoras. A verdade é que não estou preparado para fazer uma declaração mais definitiva sobre aonde tudo isso vai nos levar.
Publicado em VEJA de 9 de maio de 2025, edição nº 2943